o que se ouve entre a opy e a escola - corpos e vozes da ritualidade guarani

índice

capítulo quatro
capítulo seis




capítulo cinco:
corpos do imaginário


a dinâmica da imaginação

“Lo Duca mio discese nella barca.
E poi mi fece entrare apresso lui,
E sol, quand’io fui dentro, parve carca.

Tosto che il Duca ed io nel legno fui,
Secando se ne va l’antica prora
Dell’acqua, più che non suol con altrui.”


(Dante Alighieri, La Divina Commedia,
l’inferno, Canto VIII )


A concepção de que o conhecimento constitui-se como intertextualidade, estendendo-se num hipertexto contínuo com o mundo, conforme M. Bakhtin, constitui-se o programa da epistemologia de Bachelard. Este programa está aqui apropriado na via do redimensionamento da imaginação material em imaginação dinâmica.
Para traçá-lo, segue-se a decomposição dos liames corporais, esquema hilemórfico da referida passagem, como complexo de Ofélia d’A água e os sonhos.
Propõe-se, portanto, a inicial dissolução da forma na extensão da matéria em sua dimensão metatextual. O autor joga com a autonomia literária de sua crítica ao apropriar no próprio corpo da obra seus temas e gêneros.
Por que os ensaios literários teriam assim, caráter paradigmático nessa obra? O autor apropria-se do texto literário evidenciando assim, seu caráter metatextual, reenviando-o numa dimensão epistemológica. Esse processo neutraliza as tendências formais e positivistas criticadas e praticadas em seus escritos teoricamente epistemológicos. Essa dissolução do corpus é a cifra simbólica do recurso que libera a concepção de imaginário que aqui serve de princípio.
Na obra de Bachelard, a concepção de corpo desdobra-se a partir da noção crucial de corpus. Esse corpus só pode ser absorvido, encorporado na medida em que reivindica sua materialidade.
Portanto, o texto evidencia sua própria constituição, inscreve seu próprio corpo. A trama enunciativa redimensiona a referencialidade a partir da intertextualidade. Seu referente é a própria intertextualidade.
Essa autonomia exigida pelo imaginário em relação ao referente estende-se a uma autonomia em relação ao sujeito igualmente.
Ao reencaminhar a objetividade à intertextualidade, evidenciando o corpo do texto, o sujeito desdobra-se nesse núcleo agenciador de perspectivas. A imaginação dinâmica simula em seu corpo, por isso a conversão imaginação formal-material, o movimento sem matéria, o movimento das forças em que orgânico e inorgânico interpenetram-se e força atua sobre força. Precipitação, dissolução, sublimação.
Persegue-se aqui a hipótese segundo a qual Gaston Bachelard, em sua obra A Água e os Sonhos, aciona o perspectivismo no intuito de dissolver sua imaginação material na sintaxe de devires da imaginação dinâmica. Sua concepção de imaginário é definida no corpo do texto pelo emprego desse recurso.
Gilbert Durand encaminha essa questão ao definir, via Bachelard, a imaginação como dinamismo organizador, remetendo o símbolo à factividade, cifra de seu trajeto antropológico. Essa factividade sustentaria o plano locutório primitivo, plano em que se situa a linguagem da criança.

“Segundo o epistemólogo, muito longe de ser faculdade de ‘formar’ imagens, a imaginação é potência dinâmica que ‘deforma’ as cópias pragmáticas fornecidas pela percepção, e esse dinamismo reformador das sensações torna-se o fundamento de toda vida psíquica por que ‘as leis da representação são homogêneas’, a representação sendo metafórica a todos os seus níveis, e, uma vez que tudo é metafórico, ‘ao nível da representação todas as metáforas se equivalem’”. (1997:30)

Como se empreende essa passagem? Com o redimensionamento da objetividade via narcisismo cósmico encaminha seu perspectivismo rumo à dissolução da clausura da representação via ritmo, inserindo na duração um devir substancial. É essa sintaxe de devires que define sua concepção de imaginário.

“A imaginação não é, como sugere a etimologia, a faculdade de formar imagens da realidade; é a faculdade de formar imagens que ultrapassam a realidade, que cantam a realidade. É uma faculdade de sobrehumanidade. Um homem é um homem na proporção em que é um super-homem” (1989:18).

O super-homem define-se pela imaginação dinâmica. A criptografia que simula essa experiência foi apropriada de Nietzsche e o psiquismo ascensional, extrato de O ar e os Sonhos. A própria imaginação material só se deixa apreender sob o signo da sua dissolução, evidenciando seu princípio trágico.
Na tônica desse alinhamento do perspectivismo com a ambígua concepção de corpo, o centro nervoso da obra do epistemólogo situa-se nessa apropriação da poética nietzschiana. Por que concebê-la como o vetor de sua obra?
Neste ensaio, o autor opera com os recursos liberados pela imaginação dinâmica. Tal operação só pode ser feita a partir da imaginação material. É pressuposta visto que a transmutação nietzschiana dos valores morais envolve o ser inteiro, corresponde a uma transformação da energia vital. Essa força afirmativa não concebe matéria que não seja transformação. No entanto, essa mesma força que fundamenta a imaginação dinâmica, leva à dificuldade de sua apropriação.
1º movimento: a precipitação libera as perspectivas no corpo; 2º movimento: a sublimação converte a transcendência em recurso da imanência.
Por fim, assim como o texto, o corpo põe em jogo um locus enunciativo que interconstitui-se incessantemente nas trocas que o redefinem. Privada do esteio metafísico e liberta ao jogo dessas forças que interagem, o complexo psico-somática instaura-se como matriz. Sua criptografia suscita uma exegese libertária, configurada como simulacro.
A partir dessa concepção de imaginário traça-se uma incursão na ritualidade Guarani pela via dos discursos do corpo. Considera-se assim, como a abordagem do corpo no texto encaminha a abordagem do corpo do texto.
A ritualidade, definida aqui a partir do canto-dança coletivo, integra a série de recursos que evocam a instauração dos processos de abertura de corpos ao comportamento ativo. A dança ritual conduz um complexo regime de interação enunciativa. Os agenciamentos, conversões do locus narrativo, encaminham à concepção do corpo como via de socialidade.


Bachelard e a dinâmica dos corpos


“Uno de los problemas que se plantean en la antroplogía es: cómo captar los climas (los climas sensuales, los climas sórdidos)? Vemos que la poesia se presta admirablemente a tal tarea.” (Perlonger, 1997:148)


O foco narrativo opera como um instrumento central na construção literária da materialidade corpórea. As vozes configuram corpos.
A definição de imaginário elaborada aqui tem por princípio o perspectivismo, recurso que possibilita a transubstanciação.

A imaginação material visa, assim, liberar no próprio corpo os perceptos que constituem as perspectivas avizinhadas. Já a imaginação dinâmica é a própria condição dessa liberação que só deve se dar com a dissolução do corpo.
Ao definir imaginação como devir , a teoria da imaginação material, que prioriza o tangível e o sensual, conduz à imaginação dinâmica.

Com Narciso revela-se a vontade de conformar. O narcisismo egoísta define a imaginação como faculdade de formar imagens da realidade.

O caráter metafísico da estética schopenhaueriana, que distingue vontade e contemplação, é redimensionado numa vontade de contemplar, que evidencia a cisão metafísica do objetivismo na visualidade. Essa vontade de contemplar não se restringe ao homem, remete às forças de visão de um narcisismo cósmico. O mundo quer se ver e serve-se do homem. Libera-se a imaginação como faculdade de sobrehumanidade. Essa liberação procede via agenciamento. Através do espelho .
Essa transposição é o princípio dessa epistemologia que, através do jogo enunciativo, opera na base de transreflexividades. Durand refere-se à essa conversão bachelardiana em termos de uma revolução copérnica em que transpõem-se dos estímulos objetivos da trajetória simbólica para o próprio movimento dessa trajetória. As influências operam-se por consubstanciação e emergem como regime enunciativo:

“O imaginário não encontra suas raízes profundas e nutritivas nas imagens; a princípio ele tem necessidade de uma presença mais próxima, mais envolvente, mais material. A realidade imaginária é evocada antes de ser descrita. A poesia é sempre um vocativo. É, como diria Martim Buber, da ordem do Tu antes de ser da ordem do Isto. Assim a Lua, no reino poético, é matéria antes de ser forma, é um fluido que penetra o sonhador. O homem, em seu estado de poesia natural e primordial, ‘não pensa na lua que vê todas as noites, até a noite em que, no sono ou na vigília, ela vem ao seu encontro, avizinha-se dele, enfeitiça-o com seus gestos ou lhe dá prazer ou dor com suas carícias. O que ele conserva não é a imagem de um disco luminoso ambulante, nem a de um ser demoníaco que se ligaria a esse disco de alguma forma, mas antes de tudo a imagem motriz, a imagem emotiva do fluido lunar que atravessa o corpo...’ (Buber, Je et tu, p.40)” (1989:126).

Para agenciar o narcisismo cósmico procede-se uma operação integral, envolvendo o corpo todo. A transposição enunciativa articulada na imaginação material é o princípio da imaginação dinâmica. “Amar o universo infinito é dar um sentido material, um sentido objetivo à infinitude do amor por uma mãe.” (1989:120)

Ao acordar, às margens do Cocito, se tivermos o óbolo, seremos atravessados por Caronte.
Chega-se à Ofélia. A vontade de diluir-se define a imaginação em sua função de irreal, liberando a potência do falso. Esse devir substancial do corpo dinâmico, órgão de energia e não mais de forma, é um trabalho em que se pode fechar os olhos, é ritmado, duramente ritmado, num ritmo que toma o corpo inteiro.
“En efecto, ya que personalmente no podíamos fijar por mucho tiempo nuestra atención en esa nada ideal que representa el yo desnudo, debíamos vernos tentados a romper la duración en el ritmo de nuestros actos de atención” (Bachelard, 2000:33)

Conforme essa apropriação bergsoniana, o ritmo encaminharia à maleabilidade na interação corpo-matéria. O ritmo encaminharia assim essa dissolução da forma, descerraria seus liames. Esse processo de desobjetivação da imaginação efetua-se sobre essa característica predominante da duração: o ritmo. No entanto, essa duração não possui a fragmentação própria da contemplação formal. E sim, estende-se como devir substancial, um devir pelo interior. A imaginação dinâmica encaminha, enfim, a uma sintaxe dos devires.

pássaro silencioso: puro movimento


“A imaginação temporalizada pelo verbo nos parece, com efeito, a faculdade hominizante por excelência.”
(Bachelard, 1990:12)



Gwyrá: conjunção de pássaro e criança naquilo que caracteriza sua dinâmica: a leveza. A dança suprime interior e exterior, sincroniza corpo e matéria do conhecimento, apropriando-se da filosofia trágica dos gregos, de transformação da terra a partir da transmutação do corpo, numa transformação da energia vital .
O que leva a tal supressão na dança é a concepção de Nietzsche de que o pensamento é uma intensificação. Um pensamento que traça seu próprio plano, dimensionado a partir da imanência.
Para além do pensamento como devir, como transformação que se desloca no espaço, a dança traça seu próprio espaço, imprimindo no corpo a tensão de um silêncio, do que permanece retido no interior do movimento, impedido de mostrar-se pela supressão do desdobramento representativo própria da dança.
A leveza associa-se à retenção imanente ao movimento. Essa retenção opera segundo uma impulsão desobediente contrária à vulgaridade, qualidade do corpo forçado. A dança seria o movimento do corpo subtraído de qualquer vulgaridade e a leveza, a capacidade do corpo de manifestar-se como não forçado. Essa impulsão desobediente atua segundo um princípio de lentidão que modula a vontade. Nesse sentido, o dançarino indica-nos o que a vontade pode aprender: a ser lenta e desconfiada. A dança seria, assim, o vínculo do pensamento com o acontecimento.
“Pois um acontecimento é precisamente o que permanece indecidido entre o ter-lugar e o não-lugar, um surgir que é indiscernível de seu desaparecer.” (Badiou:84)

O ar como signo da sublimação capta precisamente a leveza própria do que devém. Como pátria do predador, é o signo da tonicidade que define esse pensamento como intensidade imanente. Essa tonicidade fria das alturas integra à força afirmativa seu silêncio. Essa aprendizagem da vontade é aclamada por Zaratustra: “Aquele que ensinar os homens do futuro a voar terá deslocado todos os limites; para ele, os próprios limites se evolarão no ar: ele batizará outra vez a terra  chama-la-á ‘a leve’.” (O espírito de peso)
Em Bachelard, a fórmula para a transubstanciação de nosso duplo pesado é a imaginação. A imaginação constitui essa interface em que a estetização possibilita relegar à morte toda essa colheita avarenta que é o ser humano para, uno actu, conquistar o ser sobrehumano. Uno actu.
Essa estetização uno actu com a vida integra o ato de ver com outro e mesmo olhar, nessa vontade-potência de arrojar-se. Seu axis é uma força autônoma, encontrada em sua própria projeção.
O que permite afirmar que tenha por princípio o perspectivismo é o fato de ser nessa dimensão, uno actu, e não na dimensão formal das idéias, que se dá a apropriação dessa poética. O perspectivismo pressupõe a multiplicidade .
“Viver o nietzscheísmo é viver uma transformação de energia vital, uma espécie de metabolismo do frio e do ar que devem, no ser humano produzir matéria aérea. O ideal é fazer o ser tão grande, tão vivo quanto suas imagens. Mas não nos enganemos: o ideal é realizado, fortemente realizado nas imagens quando tomamos as imagens em sua realidade dinâmica, como mutação das forças psíquicas imaginantes. O mundo sonha em nós, diria um novalisiano; o nietzschiano, todo-poderoso em seu onirismo projetado, em sua vontade sonhante, deve exprimir-se de um modo mais real e dizer: o mundo sonha em nós dinamicamente.” (1990:151)

O psiquismo ascencional, que pretende impor a vontade à força da gravidade, configura assim sua força como afirmação não-positiva.
A transição da emergência na imanência material, a partir da dissolução dos corpos-forma via fluxo das águas, para a tonicidade aérea da vontade é referida textualmente.
“Muitas vezes, em nossos estudos sobre a imaginação (cf. Lautréamont e L’eau et les rêves), reconhecemos uma passagem progressiva da água ao ar, assinalamos a evolução imaginária contínua do peixe ao pássaro.” (1990:152)

Força de unidade da alma humana: é como pássaro que a imaginação dinâmica faz a sua aparição.
“O pássaro, sob a forma abstrata de seu movimento, sem adorno e sem canto, é naturalmente, na imaginação nietzschiana, um excelente esquema dinâmico. Em Os sete selos, lê-se este verdadeiro princípio: ‘E se este é o meu alfa e o meu ômega, que tudo o que é pesado se torne leve, que todo corpo se torne dançarino, todo espírito pássaro: e, em verdade, este é o meu alfa e o meu ômega!’ ” (1990:154)
Esse princípio coordena-se aqui....

fios do corpo, fios do sonho

Eram duas horas da manhã. A confusão inicial da polifonia, com a execução dos trabalhos de diversos grupos simultaneamente, que começara no crepúsculo vespertino, dera lugar ao silêncio das redes ocupadas na oga-py-sy, grande nave mãe Kaiowá.
Pensei em retirar-me para minha rede, depois de ver os grupos recolhidos e todos quietos, mas a forte vibração que ecoava no silêncio segurou-me acordado. Depois de resistir à tentação do sono e permanecer mais um pouco, em meio ao silêncio vi a figura impávida de dona Odúlia, da área de Amambaí, devidamente paramentada com seus jeguakás, seus característicos mbarakás e demais ornamentos que compõem a figura dessa singular nhande-sy. Seu grupo assumiu os lugares a seu lado . O grupo era composto por um jovem, alguns adolescentes e crianças.
Deu-se início. Em contraste com sua excessiva ornamentação, o canto que soou era um mínimo. O silêncio de fundo vinha ressaltar sua voz suave que parecia vir de longe. O grupo a seguia com a mesma serenidade no canto. Diferentemente do que esperava dona Odúlia deu início a uma dança circular. As danças Kaiowá geralmente se dão em filas em que o grupo dispõe-se paralelamente.
A dança iniciou com a mesma serenidade expressa no canto. Em poucos minutos de repetição de um canto pouco mais melódico que o cadenciado mborahei Kaiowá, o conjunto tomou impulso e já compunha uma harmonia nos movimentos que coordenava cada gesto. Os movimentos continuavam serenos, mas agora velozes pareciam girar em torno de um eixo imaginário no centro do salão.
Nesse ponto, o grupo, especialmente as crianças, aumentando a volta sem sair da dança alcançaram minha mão. Tomei parte. O grupo corria em fila circular puxados pelo canto e os mbarakás velozes da nhande sy. Quando o círculo já estava consistente e se podia sentir as linhas de força que nos ligavam ao eixo, a condutora realizou uma evolução extraordinária: desdobrou o círculo em dois, desenhando um leminscático oito no chão. Passamos a cruzar assim o ponto central que nos servia de eixo. Essa evolução aumentou a intensidade das linhas de força, pois os movimentos passaram a ser mais fechados com muitas curvas. A força criada pela concentração no eixo central era agora atravessada por nossos corpos, sempre conduzidos pelo canto sereno e os mbarakás firmes de dona Odúlia e seu grupo. Ao passarem por mim, eu era o último da fila, sentia os fragmentos de suas vozes e ar de seus movimentos. (Aldeia Jaguapirú, Área indígena de Dourados, aty guaçú de julho de 2002)

educação fática


“Em certa ocasião Dionísios, sob o efeito do vinho, mandou que todos vestissem roupas de púrpura e dançassem; Platão recusou-se, citando o verso: ‘Não poderei vestir um traje feminino.’ (Eurípedes, Bacantes, 836) Arístipos, entretanto, vestiu a roupa e, aprontando-se para dançar, disse oportunamente: ‘Mesmo nas festas báquicas quem for puro não se corromperá’. (Idem, ib., 317)”
(Diôgenes Laêrtios Vidas e doutrinas de filósofos ilustres: 67)


“O tema do bramido, do grito, da ‘boca do senhor’ é isomorfo das trevas, e Bachelard cita Lawrence, para quem ‘o ouvido pode ouvir mais profundamente que os olhos podem ver’. O ouvido é assim o sentido da noite.” (Durand, 1997:92)


“ ‘O que percebemos pelos sentidos é uma das duas coisas (zona de sombra ou zona de luz), não é o barzakh. Sendo vizinhas precisam ambas de um barzakh que não seja quer uma quer outra, mas em que haja virtualidade de uma e de outra. Se assim o chamamos, tecnicamente significa que o barzakh é o limite entre o cognoscível e o incognoscível, o existente e o não existente, o mais e o menos, o inteligível e o ininteligível. Ele é Imaginação simpliciter. Quando se o percebe e se o compreende sabe-se que se percebe algo que existe, sobre que cai o olhar. Sabe-se, por indício certo, que lá há algo. Mas, então, o que é este algo de que se afirma a existência, negando-a? É que a Imaginação não é nem existente, nem não existente, nem conhecida nem ignorada, nem mais nem menos.’ ”(Corbin, apud Paula Carvalho, 1976:46)


Esta investigação tem por referencial teórico os estudos de educação fática de José Carlos de Paula Carvalho. Os princípios ritológicos ou estético fundados numa corporeidade outra definem a “dimensão epistemológica ou simbólica” dessa educação de sensibilidades de teor mythopoiético.
Na pista dessa corporeidade Outra entrevê-se um índice de abertura que parece conduzir para a intensidade do limite, em que se constitui a transgressão. Comentando os desdobramentos do biopoder de Foucault, propõe o princípio de contestação de Blanchot para encaminhar a dinâmica dessa corporeidade.
“O princípio da contestação seria o princípio dos limites, ou seja, a contestação nunca para porque no momento em que parar, o limite já se torna uma norma.” (1985:82)
E citando Bataille via Foucault:
“O domínio do interdito é o domínio trágico, ou melhor, é o domínio sagrado. É verdade, a humanidade o exclui, mas para magnificá-lo.” (1985:82)

E assim, segundo a economia da parte maldita, a corporeidade outra é a afirmação ‘não-positiva’, outra em relação ao corpo instituído pelo biopoder. O que se evidencia a princípio é a dependência íntima entre interdito e transgressão, sua relação de interdependência.
No entanto, a parte maldita atuaria como um campo de força, como zona instituinte, cujo sacrifício ou incorporação submete-se ao embate com o instituído da ordem social. Nesse ponto, em relação aos esquemas corporais Guarani, o imperceptível torna-se uma estratégia imprescindível.
A saída pelo princípio da contestação visa despistar a posição anti, devido à contestação não operar por negação, e sim por afirmação não-positiva. Como demonstra o autor, via rituais de inversão, a dinâmica do anti inclui-se na ordem social como afirmação positiva.
A partir disso, o autor considera que os estados de consciência outros, como desdobramento da reflexividade em transreflexividades, só podem ser apreendidos via hermenêutica. O texto envia às bases epistemológicas que sustentam essa corporeidade outra: o mundus imaginalis como dimensão intermediária que articula o inteligível apolíneo ao sensível dionisíaco.
Passa-se então às investigações (1985, 1985b) dos fenômenos mágico-religiosos como vivências simbólicas, os quais preparam a emergência da Educação Fática como contra-educação ou educação de sensibilidade, via paradigma holográfico.
“O paradigma holográfico, proveniente da convergência entre os trabalhos de mecânica quântica de Bohm e os trabalhos de neurofisiologia de Pribram, permitiria: a) viabilizar a homologia, a isomorfia mesmo (uma vez que rompe com o universo das representações) , entre universo e consciência, entre matéria e consciência, assim criticando a concepção ‘fragmentar’ e ‘objetiva’ do paradigma ‘clássico’, ao mesmo tempo em que estabelecia, de modo ‘positivo’ , a posição compreensivo-hermenêutica numa releitura ‘holonômica’ do ‘solipsismo epistemológico’ (por onde a questão do funcionamento do ‘triunic brain’ contaminaria de ‘subjetividade’ constitutiva uma teoria da descrição científica); b) compreender a orientação trofotrópica dos ‘estados modificados de consciência’ como uma apreensão específica do que foi chamado ‘implicate order’.” (1985b:134)

O autor encaminha a abertura neg-entrópica, que se defronta à estrutura de pressupostos e ao não-dito dos esquemas de pensamento hegemônicos, para a “ordem” implícita imaginada por Bohm e bloqueada, segundo ele, aos esquemas de pensamento da “explicate order”. Segundo Bohm, via Paula Carvalho: “a relatividade e a teoria quântica concordam em que ambas implicam a necessidade de se considerar o mundo como uma totalidade indivisa, onde todas as partes do universo, inclusive o observador e seus instrumentos, amalgamam-se unindo-se num único todo. Nessa totalidade, a forma atomística de insight é uma simplificação e uma abstração, somente válida num contexto limitado. Talvez a nova forma de insight possa ser melhor chamada de totalidade indivisa movimentando-se por fluxos. Esse enfoque implica que aquilo que flui é, em muitos sentidos, primário com relação às coisas que se formam e se dissolvem nesse fluxo. Pode-se ilustrar o que se quer aqui significar considerando-se o ‘fluxo de consciência’. Esse fluxo de consciência não é definível de modo preciso sendo, entretanto, primeiro com relação às forma definidas de pensamentos e idéias que podemos ver se formarem e se dissolverem no fluxo, como dobras, ondas e vórtices no fluxo de uma correnteza... O propósito dessa nova forma genérica de insight consiste em insistir em que toda matéria é dessa natureza, isto é, há um fluxo universal que não pode ser explicitamente definido, mas que só pode ser conhecido implicitamente, como indicado pelas figuras e formas explicitamente definidas, algumas estáveis, outras instáveis, que podem ser abstraídas do fluxo universal. Nesse fluxo, consciência e matéria não são substâncias separáveis. Melhor, são diferentes aspectos de um total e indiviso movimento.” (1985:135)
Concluindo com o autor, apontar os limites da “explicate order” é encaminhar às aberturas neg-entrópicas, pois esse percurso é o próprio empreendimento dos dispositivos de operação na “multidimensional n-implicate orders”, em que a imaginação conduz a dinâmica simbólica. Assim, a holonomia entre matéria e consciência evidencia o caráter projetivo da “psique” numa totalidade indivisa; o cérebro é um holograma que interpreta um universo holográfico.

vivências simbólicas

“Não importa o que se revela e o que se guarda para si. Tudo o que fazemos, tudo o que somos, reside no poder pessoal. Se temos o suficiente, uma palavra que nos for pronunciada pode ser suficiente para mudar o rumo de nossas vidas. Mas se não tivermos suficiente poder pessoal, o fato de sabedoria mais magnífico nos poderá ser revelado sem que tal revelação faça a menor diferença.” (Castañeda, 1974:16)


O campo de referências em que circula a corporeidade outra funda o caráter ritológico e estético da educação fática. Paula Carvalho pontua, nessa exposição, a centralidade metodológica do transe e dos diferentes estados de consciência, os d-SoC de Tart, na implicação fundamental do complexo somato-psíquico na consideração da questão paradigmática:

“A semelhança entre um paradigma e um d-SoC é clara. Tanto um paradigma quanto um estado de consciência são um conjunto complexo de inter-relações de regras e teorias que têm como objetivo interagir e interpretar experiências dentro de um determinado contexto. Em ambos os casos as regras e teorias tornaram-se amplamente implícitas. Elas não são reconhecidas como hipóteses de trabalho experimentais: operam automaticamente e a pessoa sente que está fazendo o que é ‘óbvio’ ou ‘natural’. Ora, se considerarmos que nossa abordagem lidará com a proposta de leitura das vivências simbólicas de conteúdo mágico-religioso como ampliações da consciência (os ‘estados outros’ de consciência que, integrados num espectograma de funções conscienciais nos dão uma consciência ampliada por ‘mapas de realidade’), veremos que a questão paradigmática se torna mais aguçada, não só porque amplia o espectro de significações e de possíveis frente à viseira do paradigma instituído (no caso, e ‘clássico’), mas sobretudo porque, grande subjacência subliminar que é (geralmente os paradigmas, com o ‘habitus’, tornam-se o ‘não-dito’, a ‘estrutura de pressupostos’ e o ‘ideologema’, donde a necessidade de explicitá-los, de desmontá-los), defronta-se com a proposta de uma ‘desautomatização’ (Deikman) que é abertura neg-entrópica nas rito-lógicas dos esquemas de pensamento (instituídos), como a lógica dos epistemas e das normalizações em Foucault tentara encaminhar também.” (1985:129)

A exposição desdobra-se numa complexa trama, da qual interessa aqui pontuar, fundamentalmente, a questão da subjacência subliminar, desdobrada numa estrutura de pressupostos, o não-dito.

educação fática e hermenêutica


“Na nossa cultura, a gente nunca corta a sua palavra, espera até acabar, isso é respeito”.

Maurício Popygua


“Não poderíamos ter acesso ao objeto último do conhecimento sem que o conhecimento fosse dissolvido - esse conhecimento que quer reconduzir esse objeto último às coisas subordinadas e manuseadas. O problema último do saber é o mesmo que o do consumo. Ninguém pode ao mesmo tempo conhecer e não ser destruído, ninguém pode ao mesmo tempo consumir a riqueza e aumentá-la.”
(Bataille, 1975:110)


A Educação Fática posiciona-se hermeneuticamente alinhada às propostas da gnose de Eranos e da antropologia do imaginário. Segundo Paula Carvalho, viver a experiência simbólica e desvendar o sentido dos símbolos são situações que mutuamente se implicam (1976:23). Assim, o imaginário deve fornecer os viáticos necessários para a experiência simbólica do círculo hermenêutico. O autor (1998, cap. III) traça um panorama hermenêutico situando as apropriações a serem feitas. Para situar o relato no âmbito de uma hermenêutica antropológica, parte dos dois pólos: a arte da interpretação e a hermenêutica da facticidade.
O primeiro pólo sustenta-se sobre a concepção de um desnível entre sentido literal e sentido figurado. Está associado â interpretação textual e marca a autonomia em relação ao referente. Nesse âmbito é que emerge a problematização do perspectivismo, do ponto de vista, Sehe Punkt, ainda bastante presa à dimensão do texto, como a perspectiva da subjetividade enquanto instaurativa do sentido, pois o Sehe Punkt instaura o universo da compreensão pela implicação do sujeito no texto-objeto.
O pólo facticidade estabalece-se a partir do perspectivismo e envolve o projeto fenomenológico. Situa os sentidos, a perceptualidade, em seu caráter epistêmico. Para Ricoeur a função paradigmática da hermenêutica, redefinindo a Lebenswelt, consiste no “surplus de sens”, nesse excedente de sentido da experiência viva que torna possível a atitude objetivadora e explicativa, convocando as variações imaginantes. Para explorar esse pode-ser, o autor encaminha à imaginação como propriedade do texto de propor figurações.
A partir de tais pólos, o autor conduz à concepção da hermenêutica criadora da antropologia do imaginário. Tributária da energética psíquica de Jung, essa hermenêutica criadora é encaminhada segundo as leis da compensação e da enantiodromia, que permitem a conciliação das dimensões do patente e do latente.
Segundo Paula Carvalho, “a enantiodromia consiste exatamente numa reversão, ou numa explosão que é uma conversão às avessas do regime oposto e na constelação oposta àquela que conscientemente se dá. Os exemplos clássicos são os exemplos de Nietzsche e de São Paulo.” (1998:156)

As figurações do processo criativo, que remontam à imaginação poética dos românticos, encaminham, como já foi visto, ao princípio do imaginário bachelardiano que instaura o imaginário na dinâmica intersubjetiva. Daí o risco de interpretá-lo ao pé da letra, visto que o texto implica-se.
Esse processo é por ele referido, certamente remetendo ao sonho do desconhecido , com a definição paradoxal daquilo que pretende apropriar-se na obra de Nietzsche: o ideal é realizado? O oxímoro é a chave para o que segue: “O mundo sonha em nós, diria um novalisiano; o nietzschiano (...) o mundo sonha em nós dinamicamente.” (Bachelard, 1990:151)

Ideal, conceito caro a Nietzsche. “Do grego eidos e eidolo, não somente aquilo que ‘se vê’, mas também aquilo através ‘do que se vê’”. Do quid ao quis via quibus auxiliis.
É a esta concepção que remete Viveiros de Castro (1986) ao citar a passagem segundo a qual a palavra Alheia só pode ser apreendida em seus reflexos: videmus nunc per speculum in aenigmate, citando um mestre das citações, J.L. Borges, citado por Leon Bloy citando São Paulo (l Cor.XIII, 12), que falava que não se via, agora, senão em enigma e através de um espelho.
Estabelecida a dualidade heurística e moral de Anaximandro, o devir pode ser afirmado. Heráclito coloca a intuição a seu serviço. O devir afirma, não refere, não nega. Ao mirar o princípio das demonstrações passa para outra ordem. E afirma:
“ ‘Só vejo o devir. Não vos deixeis enganar! É à vossa vista curta e não à essência das coisas que se deve o fato de julgardes encontrar terra firme no mar do devir e da evanescência. Usais os nomes das coisas como se tivessem uma duração fixa; mas até o próprio rio, no qual entrais pela segunda vez, já não é o mesmo que era da primeira vez’ ”. (Nietzsche, 1995:40)

Uno actu libertação e conquista do sobrehumano. Bachelard atribui ao verbo emergente esse devir que possibilita a hominização via multiplicidade. Admiramos-nos então ante o embate de forças que se dá através desse jogo de agenciamentos do qual o ser humano, ainda que abrigado sob a colheita avarenta, foi parido.
Nietzsche remete ainda o mestre ao tribunal da razão, no qual Aristóteles condena o acusado de atentar contra o princípio da contradição ao responder pela afirmação de que é possível tomar o mesmo como sendo e não sendo o mesmo, ao mesmo tempo e no mesmo sentido.
Como psicanalisar, visando emergirem suas sombras, a ontologia naturalista da epistemologia ocidental, profundamente marcada pelo encaminhamento etnocêntrico, e seus correlatos provincianos, que a conduz a uma radical negação do outro, relegando seu discurso ao silêncio por diversas formas de violência? .
“‘A palavra ‘bárbaros’ significara originalmente: aquele de que não se compreende a língua... Pelo fato de que o estrangeiro seja totalmente incompreensível, deduz-se, quase que automaticamente, que ele não faz parte da espécie humana...’ Eis posta, a temática da ‘pseudo-especiação’ como situação-limite desfigurador no trato com a alteridade, e com o Outro.” (Paula Carvalho, 1985:823)
Silêncio não é ausência de palavra. No caso, traça um processo de sensibilização. Só pelo silêncio e a sensibilidade se conduz ao refinamento da percepção. É necessária essa renúncia a querer apreender. Ela opera-se num outro plano, chame-se estética fisiológica ou êxtase. Inverte-se o fluxo unidirecional para afirmar-se em contra-fluxo.
“Mas o silêncio não anula aquilo que a linguagem não pode afirmar: a violência não é menos irredutível que a morte, e se a linguagem esconde por um ângulo o aniquilamento universal - a obra serena do tempo -, é só ela que sofre, que se limita, não o tempo, a violência.” (Bataille, 1987:176)

A partir desse processo, encaminha-se a operação com tais figurações em seu redimensionamento epistemológico. Apropriar-se das categorias do pensamento ameríndio buscando recompor sua ontologia e, a partir daí, esboçar uma epistema a partir de tais operações: parece ser o propósito da etnologia regional apropriada aqui via Viveiros de Castro.
A etnologia redimensiona essa epistemologia ao atribuir-lhe não só a propriedade de mirar-se sob a figuração do nativo, transição antropológica, e sim, propõe o perspectivismo ameríndio como um pensamento no qual ela co-implica.


Mens aeterna est, quatenus res sub aeternitatis specie concipit.
Espinosa, Ética.


“Não fosse para Dionisio a procissão que fazem e o hino, que entoam com as vergonhas sagradas, praticariam a coisa mais monstruosa. Mas Hades e Dionisio é o mesmo, para quem deliram e festejam.”
(Heráclito, apud Clemente, Protréptico, 34, 5)

Imaginação criadora: empreender o processo que cria a obra livre do referente. A obra enquanto simulacro. Não como coisa em si nem como representação. É difícil sair da esfera representativa quando imaginamos estar relatando o que se passou em campo. O que se concretiza em campo é uma reformulação de mundo operada através de uma reformulação de si que constitui-se num processo de alheamento-estranhamento que permite a transformação.
Roberto Cardoso de Oliveira, reorienta o antropólogo ao caráter epistêmico dos sentidos, certo distanciamento que permita deixá-los abertos a reformulação, à entrada dos elementos estranhos, a uma adaptação que se opera por meio da troca com o interlocutor, um hiato no corpo que permita vislumbrar um potencial de abertura no próprio corpo e, assim, no corpo do outro, em que esses corpos permaneçam abertos para interconstituição, evitando que a violência dos pressupostos conserve a inflexibilidade, inclusive cognitiva, interpondo-se à aprendizagem.
O primeiro processo de integração auto-reguladora empreendida pelo símbolo, afirma Paula Carvalho via Durand, é a morte:
“Antes de tudo, em sua faticidade imediata, em sua espontaneidade, aparece o símbolo restabelecendo o ‘equilíbrio vital’ comprometido pela compreensão da morte.” (Durand, apud Paula Carvalho, 1976:32).

Para o autor, esse símbolo primeiro marcará todos os subseqüentes: equilíbrio psicossocial, equilíbrio antropológico e, por fim, o equilíbrio da neotenia neg-entrópica.
“Por fim, depois de ter instaurado a vida frente à morte e, frente à desordem psicossocial, o bom sentido do equilíbrio; depois de ter comprovado a total universalidade dos mitos e dos poemas, instaurado o homem como homo symbolicus, o símbolo, frente à entropia positiva do universo, erige finalmente o domínio do ‘valor supremo’ e equilibra o universo que transcorre com um Ser que não transcorre, ao qual pertence a Infância eterna, a eterna aurora, e assim desponta numa ‘teofania’.” (1976:32)

Assim, o autor encaminha-se à elaboração das dimensões da abertura neg-entrópica, que coordena o complexo somato-psíquico, só se dando por meio de sua transformação, em companhia do símbolo primordial que constitui a Morte como arquétipo que articula o universo da angústia e os esquemas da sizígia em relação à Morte.
Esta concepção coordena-se à ritualidade segundo Maertens apresentada por Paula Carvalho:
“Os ritos, vê-lo-emos com J. Thierry Maertens, têm como raíz a ‘Thanatos’. (...) Eis que real e profundamente, como nô-la demonstra ampliadamente J. Thierry Maertens, a ritualidade emerge da pulsão de morte na medida em que o discurso fálico que a organiza deve, para se impor aos vivos e, particularmente, à mulher como fonte de vida, falar desde de o lugar-espaço da morte...’” (1985:828)

sistema da crueldade
do intersubjetivo ao corpo sem órgãos

A psicologia do orgiasmo, concebido como um sentimento transbordante de vida e de força, no interior do qual a dor mesmo produz o efeito de um ‘estimulante’, deu-me a chave da noção de sentimento trágico, que não foi compreendida nem por Aristóteles, nem, em particular, por nossos pessimistas. A tragédia está tão longe de provar um pessimismo dos gregos no sentido de Schopenhauer, que deve ao contrário ser compreendida como uma refutação e um recurso contra essa teoria.” (Nietzsche, apud Brum:68)

“Ninguém, na verdade até o presente, determinou o que pode o corpo, isto é, a experiência não ensinou a ninguém, até o presente, o que, considerado apenas como corporal pelas leis da Natureza, o corpo pode fazer e o que não pode fazer, a não ser que seja determinado pela alma.”

Espinosa


A importância crucial da dinâmica interlocutória nesta investigação deve-se ao fato de que sua problematização envia para a questão motriz: a corporalidade. O terceiro elemento considerado é a imaginação. A ritualidade fornece o esquema de causalidade própria que, se supõe, traça o plano que condiciona seu exercício.
O corpo fornece aqui primeiramente o princípio de causalidade que libera o jogo de vozes do texto , o que se viu em Bakhtin como exotopia, dialogismo e polifonia. Os limites da intersubjetividade, assentada na consciência, são colocados igualmente à imaginação.
Uma resolução é proposta por Bachelard: associa-se ao corpo (imaginação material) apropriando-se desse mesmo esquema (imaginação dinâmica).
Gilbert Durand verifica em Bachelard uma sintaxe das imagens que opera por analogon simbólico. Apropria-se da intuição bachelardiana da imaginação como dinamismo organizador e sua conseqüente homogeneidade das representações das quais se destaca a operação sobre as cópias fornecidas pela percepção.

“Segundo o epistemólogo, muito longe de ser faculdade de ‘formar’ imagens, a imaginação é potência dinâmica que ‘deforma’ as cópias pragmáticas fornecidas pela percepção, e esse dinamismo reformador das sensações torna-se o fundamento de toda vida psíquica por que ‘as leis da representação são homogêneas’, a representação sendo metafórica a todos os seus níveis, e, uma vez que tudo é metafórico, ‘ao nível da representação todas as metáforas se equivalem’”. (1997:30)

Assinala o poder de repercussão do símbolo, encaminhando o fator de factividade que investe a linguagem. A homogeneidade na representação, que alinha os discursos evoca o plano locutório (Bakhtin falaria em gêneros e na intertextualidade detonada pelo dialogismo intersubjetivo)
“O plano primitivo da expressão, de que o símbolo imaginário é a face psicológica, é o vínculo afetivo-representativo que liga o locutor e um alocutário e que os gramáticos chamam o ‘plano locutório’ ou interjetivo, plano em que se situa  como a psicologia genética o confirma  a linguagem da criança.” (1997:31). O plano delocutório, de caráter objetivante, é secundário, visto que dispõe-se a partir desse semantismo do imaginário  em que as metáforas se equivalem , desse amplo sentido das metáforas, exemplificado pelo pensamento da criança.
A partir dos princípios nietzschianos, Bachelard estabelece o programa para sua concepção de imaginário. Como está sendo visto não é um tal semantismo do imaginário que libera o corpo para deformar seus percebidos, e sim, o corpo (campo de forças, imposição de vontades, afectos) que fornece, via transmutação do ser inteiro ou transformação da energia vital, o princípio de causalidade (o qual traça o plano que condiciona seu exercício) ao dinamismo do imaginário (1990:127). É o que leva o autor a transpor a distância que separa o eco da voz e lançar-se na rapidez fulminante imagem-pensamento. A voz ganha corpo.
Talvez se imagine  se intua ou se trace  aqui um ouvir que prepara o plano locutório. Esse ouvir não opera por organização, formação, desenvolvimento de formas. O ouvir de Lawrence retomado por Bachelard segundo o qual: “The ear can hear deeper than eyes can see.” O ouvido pode ouvir mais profundamente do que os olhos podem ver. O ouvir é o sentido da noite primordial de tinieblas primigenias, da bruma primeva.
Esse ouvir tem como imagem primeira, para não se falar novamente em princípio de causalidade, a constituição do corpo de Ñamanduï enquanto puro som. Ayvu Rapyta: yvára rendupa.
Buscou-se já traçar esse plano (2003) buscando expor o princípio de causalidade que ora se apresenta acionado pela ritualidade. A partir disso, a atribuição de um platonismo ao Ayvu Rapyta (Meliá:333) afirma princípios distintos dos que liberam a via aqui traçada (Viveiros de Castro, 1987; 2002).
Associa-se, para prosseguir, aos planos de transcendência e imanência propostos por Deleuze-Guattari (1997:54). Por aqui se conduzirá uma imagem-pensamento, melhor seria corpo-pensamento, de rapidez fulminante que também será guiada pela exemplaridade da criança.
Os autores caracterizam o plano de transcendência ou organização como um princípio oculto, que dá a perceber sem poder ser percebido.

“Uma estrutura oculta necessária às formas, um significante secreto necessário aos sujeitos. Sendo assim, é forçoso que o plano não seja dado.(...) É um plano de analogia, seja porque assinala o termo eminente de um desenvolvimento, seja porque estabelece as relações proporcionais da estrutura.(...) Mesmo que o digamos imanente, ele só o é por ausência, analogicamente (metaforicamente, metonimicamente, etc.).” (1997: 54)

Já o plano de imanência define-se por uma dinâmica diversa do plano. O próprio princípio de composição deste trabalho, aqui denominado ouvir, norteado pela corporalidade-hecceidade como princípio da crueldade, norteia-se por esse princípio trágico: o plano de imanência:

“Aqui não há mais absolutamente formas e desenvolvimentos de formas; nem sujeitos e formações de sujeitos. Não há nem estrutura nem gênese. Há apenas relações de movimento e repouso, de velocidade e lentidão entre elementos não formados, ao menos relativamente não formados, moléculas e partículas de toda espécie.”(1997:54)

Pelo corpo suprime-se o princípio oculto da representação. Não se fala, esclareça-se, de uma vontade schopenhaueriana . A voz tem um corpo. Acessa-se o Sistema de crueldade: escrita de sangue: concepção do trágico que serão abordados na etnologia de Pierre Clastres.
Ao se falar no poder desestratificador da imaginação como faculdade deformadora da estética da criação verbal, já se percebe o caráter organizador da intersubjetividade  utilizada como estratégia para nosso primeiro deslocamento dos extremos sujeito/objeto  como pólo que encaminha a determinação no/do processo de subjetivação.
A subjetivação é encaminhada aqui em sua dimensão estética a partir do último Foucault (estudado também via corporeidade outra) segundo a qual o objetivo hoje em dia não seja descobrir o que somos, mas recusar o que somos . Seria esse problema que justificaria aqui a filosofia universalizante. Situa-se, no entanto, o discurso, cuja questão central ainda é o tempo presente e aquilo que somos neste exato momento.
Agenciado na letra de Deleuze, essa concepção estética da existência remonta seu princípios nietzschianos.
Foi essa dimensão da ritualidade que se buscou nos escritos de Nietzsche sobre a estética ritual Grega. Essa estética como princípio de possibilidades de existência/vida é contraposta às determinações morais que encaminham o conhecimento à fortificação da clausura do sujeito.
É dessa forma que a ritualidade, através do poder dionisíaco da música e da dança de operar sobre os corpos como vontade, fornece o solo pré-conceitual ou o plano de imanência para a concepção do devir . Esta é a concepção do trágico.
O devir é revitalizado nessa dimensão trágica de uma estética da existência gravada no corpo. O corpo é a própria instauração desse combate entre forças de estratificação e dissipação que constituem o devir.
É a partir dessa dinâmica, e não mais de noções extremas como sujeito e objeto, que se encaminha a intersubjetividade.
Busca-se, com o material aqui elaborado, considerar corpo como a sede da hecceidade. Em relação ao caráter constitutivo que define a subjetividade, a hecceidade (afetos e movimentos locais, velocidades diferenciais, movimento e repouso) encaminha, via sistema de crueldade , ao problema da impessoalidade.

“Ali onde Mauss e depois Levi-Strauss ainda hesitam, Nietzsche não tinha dúvidas; há uma justiça que se opõe a todo juízo, segundo a qual os corpos marcam-se uns aos outros, a dívida se escreve diretamente no corpo, conforme blocos finitos que circulam num território.” (1997b:145)

O caráter organizador do corpo apolíneo é infiltrado por um corpo sem órgãos. Os corpos atravessados por um regime de intensidades, com seu poder de afetar e ser afetado, como vontade de potência, passa a nortear o próprio plano de transcendência via corpo-sem-órgãos.
“O corpo sem órgão é um corpo afetivo, intensivo, anarquista, que só comporta pólos, zonas, limiares e gradientes. Uma poderosa vitalidade não-orgânica o atravessa.” (Deleuze, 1997b:76)
A partir disso, o poder organizador subjacente à intersubjetividade dissolve-se nesse regime de intensidades. Longe de ser abolido, é sim, concebido como força que atua contra força, conforme impulsos estéticos. Para deixar claro essa passagem  que o anti-asno não se confunda com o ressentido hábito das oposições  investe-se novamente contra o juízo.

“Mas esses combates exteriores, esses combates-contra encontram sua justificação em combates-entre que determinam a composição das forças no combatente. É preciso distinguir o combate contra o Outro e o combate entre Si.” (1997b:150)

Esse combate-contra está aqui associado à guerra e refere-se ao reativo hábito das oposições. O combate-entre é potência afirmativa sediada no corpo que procede do devir heraclitiano. A vitalidade é critério da hecceidade.
É essa hecceidade que conduz ao problema da percepção. No plano de transcendência, que dá a perceber sem poder ser percebido, os movimentos e devires estão fora do limiar de percepção. A constituição da perceptividade, o devir imperceptível, é problema colocado em relação ao plano de imanência, visto que aqui é o próprio princípio de composição que deve ser percebido, que não pode senão ser percebido ao mesmo tempo que aquilo que ele compõe ou dá.
A (inter)subjetividade constitui-se, reafirmando esses substratos organizados, sujeito/objeto, como tendência organizadora. A hecceidade constitui-se devir imperceptível disperso nos entre-momentos.

“É que a percepção não estará mais na relação entre um sujeito e um objeto, mas no movimento que serve de limite a essa relação, no período que lhe está associado. A percepção se verá confrontada com seu próprio limite; ela estará entre as coisas, no conjunto de sua própria vizinhança, como a presença de uma hecceidade em outra: olhar apenas os movimentos.” (1997: 76)

Dominique Gallois, referindo-se às viagens rituais do xamã, define: “a relação xamanística consiste numa forma de controle do movimento”(1996: 41).

O caráter trágico do som instaura no corpo da dança o princípio de crueldade que detona um campo de imanência. A segmentarização, a dinâmica desestratificante do ritmo infiltra o corpo estanque, minando seus estratos e liberando-o às hecceidades. O surgimento e desaparição da música, essa sucessão de emergências de acontecimentos instaura o ritual. Esse princípio trágico da música ritual coordena-se com o que se vê em Nietzsche e Clastres como princípio da crueldade. Wisnik descreve em poucas palavras de que se trata esse princípio.

“A música primitiva trava antes de mais nada uma relação com o corpo indiviso da terra: seus fluxos germinais intensos são inscritos ruidosamente, dolorosamente, no corpo dos homens e das mulheres, e dessa inscrição se extrai o canto sonoro” (2001:30)

No entanto, sua concepção da função da música na manutenção da ordem exemplifica o que parece destoar neste princípio.

“Como o mundo modal não se baseia na ordem da representação (estética e política), mas na ordem do sacrifício, a descrição sócio-econômica e cosmológica da escala não se faz, no caso, como uma simples metáfora da sociedade, mas como um instrumento ritual de manutenção da ordem contra as contradições que a dissolveriam.”
(2001:70)

A noção de sacrifício de Wisnik apresenta o movimento norteado pela concepção Aristotélica que vê na tragédia uma purgação edificante pelo sacrifício, sendo, portanto, pautada nos valores da consciência. O que se coloca aqui em questão é a tentativa de explicar o ordenamento do mundo primitivo pela música.
Não se nega aqui, como vimos com Leroi-Gourhan, que tal concepção tenha importância crucial no entendimento do processo filogenético de organização da sociedade. O que se põe em dúvida é a oposição simétrica ordem-caos enquanto pressuposto, a qual não considera uma organização complexa que emerja do próprio caos, que se conceba a partir do conflito. Esse pressuposto tem desdobramentos que devem ser considerados no contexto desta discussão, visto que sua problematização levantará questões fundamentais para este trabalho.
Ao contrário dessa concepção, segundo a qual esse ritmo serviria para constituir a organização de um mundo (tempo-espaço), polariza-se a concepção de que contraposto a um tal caos primordial, que tal ritmo buscaria contrapor, estabelece-se não tanto um plano de organização como um plano de imanência outro, com outras variações de velocidade. A distinção opera uma conversão da inversão negativa de tal poder de desestratificação numa afirmação desse próprio princípio, marcada então por modulações temporais próprias/marcadamente humanas.

“Aion, que é o tempo indefinido do acontecimento, a linha flutuante que só conhece velocidades, e ao mesmo tempo não pára de dividir o que acontece num já-aí e um ainda-não-aí, um tarde-de-mais e um cedo-demais simultâneos, um algo que ao mesmo tempo vai se passar. E Cronos, ao contrário, o tempo da medida, que fixa as coisas e as pessoas, desenvolve uma forma e determina um sujeito. Boulez distingue na música o tempo e o não-tempo, o ‘tempo pulsado’ de uma música formal e funcional fundada em valores, o ‘tempo não pulsado’ para uma música flutuante, flutuante e maquínica, que só tem velocidades ou diferenças de dinâmica.” (1997:48)

Cortando essa concepção consciente, atravessa numa velocidade infinita uma afirmação que não se opõe, não se isola no plano de transcendência. Esse princípio trágico é o que se busca afirmar aqui numa apropriação do espírito trágico da música que transmuta o pessimismo em afirmação máxima da vida com todas as suas adversidades.

princípio de causalidade

A contribuição que este trabalho, que bebeu da educação fática, tem como retorno refere-se à abordagem que se empreendeu aqui da ritualidade guarani. Ao convite, diria-se intimação, para interpretar a ritualidade a partir de um plano de organização, definido aqui em termos de explicate order, respondeu-se com a busca de empreendimentos que traçassem o plano de seu próprio exercício. A este plano que se constrói concomitantemente ao que produz, que manifesta seu princípio de composição no processo, chamar-se-á plano de imanência. Essa subjacência subliminar, estrutura de pressupostos ou não-dito referidos, são sustentados por um plano que não se dá a conhecer em seu processo, que dá a perceber sem ser percebido. Deleuze-Guattari o denominam plano de transcendência.
Paula Carvalho recorre ao caráter paradigmático dos d-SoC (diferentes estados de consciência), bem como do transe, visando acionar dispositivos teóricos pautados na corporalidade que encaminhem o caráter epistemológico da ritologia e da estética na educação fática.
Com o propósito de encaminhar uma causalidade própria ao plano de imanência, operando por linhas de fuga ou de desterritorialização, os autores enviam à percepção molecular. Para tanto contrapõem o esquema de causalidade do psicotrópico ao da psicanálise. Ao inferir um plano inconsciente, subtraído ao sistema da percepção, a psicanálise caracteriza-o como um plano de transcendência cujo esquema causal encaminha a uma perpetuação do imperceptível que justifica a instituição do psicanalista. O imperceptível é lançado cada vez mais longe quando se busca assimilá-lo na consciência via máquina dual.
Nessa linha abstrata de causalidade criadora da percepção molecular, em que o percebido acerca-se do imperceptível, a experimentação substitui a interpretação. O desejo investe a percepção de uma maleabilidade que conduz às micropercepções rizomáticas.
No entanto, as questões que sondam os autores na condução dessa causalidade, segundo a qual o inconsciente só pode ser captado numa operação trágica de dissolução da consciência, pautam-se ao esquema do psicotrópico. Ao suprimir ritos e civilizações, coloca-se a difícil questão de como traçar o plano que condiciona seu exercício? Nesse ponto retoma-se a ritualidade para, ao invés de retroceder, insistir nessa linha.
A ritualidade envia ao plano de imanência pela operação com os ritmos e as velocidades. Essas variações de compasso, que fornecem a senha para a constituição de tempos virtuais, dissemina a micropercepção rizomática. A liberação dessas micropercepções moleculares num plano senhor das velocidades e das vizinhanças constitui-se na ritualidade das sociedades ameríndias, no caso Guarani.
Como se viu a questão dos limites da consciência é fundamental na definição do plano de imanência. Nesse plano, o princípio de composição é percebido concomitantemente ao que ele compõe. Seu esquema de causalidade suprime o princípio oculto próprio ao plano de transcendência.

Pensa-se como constitutiva a passagem dos sistemas da crueldade, em que o corpo é o mediador que se difere de uma teoria do juízo na esteira da filosofia trágica.

“O sistema da crueldade enuncia as relações finitas do corpo existente com forças que o afetam, ao passo que a doutrina da dívida infinita determina as relações da alma imortal com os juízos.” (1997b:145)

A partir dessa concepção moral os valores da consciência passam a submeter a vida em nome de valores superiores. A definição dessa doutrina do julgamento, elaborada da tragédia grega à filosofia moderna, eixo gravitacional do pensamento ocidental, ganha corpo com a ruptura de Spinoza com a tradição judaico-cristã. Essa ruptura tem no corpo sua pedra angular. Dessa ruptura resulta a redefinição paradigmática apontada por Paula Carvalho visando situar a educação fática. Os corpos ordenam-se segundo os afetos, affectio-efeito. “Um signo, segundo Spinoza, pode ter vários sentidos. Mas é sempre um efeito. Um efeito é, primeiramente, um vestígio de um corpo sobre um outro, o estado de um corpo que tenha sofrido a ação de um outro corpo: é uma affectio” (1997b:156)

Essa operação epistemológica de alinhar-se ao corpo-pensamento conduz à proposta esboçada na concepção de trágico de Nietzsche. Esta concepção assume a problemática da implicação da vida-pensamento, amor fati. Recolhendo-o pode-se passar à sintese de Deleuze-Guattari em Mil platôs. Antes de introduzir-se a série de conceitos criados pelos autores, pode-se alinhá-los para o trato sob um propósito: encaminhar o plano de imanência como modos de existência outros. Esse processo procede uma individuação por hecceidade (movimento e repouso, poder de ser afetado e de afetar) em que o pensamento e a consciência servem de meio a um vitalismo estético.
Nesse processo, a subjetividade revela seu caráter ativo de conservação, de fixação em sujeito. Exercitada conduz a isso. Já a subjetivação visa o exercício da singularização na via de uma estética da existência que tem no corpo seu princípio de causalidade.

“O Abstrato nada explica, devendo ser ele próprio explicado: não há universais, nada de transcendentes, de Uno, de sujeito (nem de objeto), de Razão, há somente processos que podem ser de unificação, de subjetivação, de racionalização, mas nada mais. Esses processos operam em multiplicidades concretas, sendo a multiplicidade o verdadeiro elemento onde algo se passa.” (Deleuze, 1992:182)

Suprimindo-se o juízo, libera-se a subjetivação. O juízo impede a chegada de qualquer novo modo de existência. Os estados de exceção convertem a subjetividade compacta, em subjetivação maleável.

“O presente envenenado do platonismo foi ter introduzido a transcendência em filosofia, ter dado à transcendência um sentido filosófico plausível (triunfo do juízo de Deus). (...) Qualquer reação contra o platonismo é um restabelecimento da imanência em sua extensão e em sua pureza, que proíbe o retorno de um transcendente. A questão é saber se tal reação abandona o projeto de seleção dos rivais, ou, ao contrário, como acreditava Spinoza e Nietzsche, estabelece métodos de seleção inteiramente diferentes: estes não incidem sobre as pretensões como atos de transcendência, mas pela maneira pela qual o existente se enche de imanência” (1997b:155)

Imaginar a morte como esse princípio organizador parece prender-nos à essa concepção da intersubjetividade pautada nos mesmos valores da subjetividade  unidade, essência, permanência, universalidade  os quais se busca suspender. Mesmo a morte é tomada a partir da consciência.

“Não seria necessário conter uma vida no simples momento em que a vida individual afronta a morte universal. Uma vida está em qualquer lugar” (2001:228)

da percepção ao impessoal

“Por outro lado, quando Foucault chega ao tema final da ‘subjetivação’, esta consiste essencialmente na invenção de novas possibilidades de vida, como diz Nietzsche, na constituição de verdadeiros estilos de vida: dessa vez, um vitalismo sobre fundo estético.” (Deleuze, 1992:114)


Com o propósito de encaminhar uma causalidade própria ao plano de imanência, operando por linhas de fuga ou de desterritorialização, os autores enviam-se à percepção molecular. Para tanto, contrapõem o esquema de causalidade do psicotrópico  possível do plano de imanência  ao da psicanálise  resquícios do plano de transcendência. O modelo do psicotrópico fornece o plano necessário ao investimento sobre a percepção. O esquema de causalidade da psicanálise apesar de próprio, é tributário do plano de transcendência por sustentar seu princípio oculto. O imperceptível é lançado cada vez mais longe quando se busca assimilá-lo na consciência.

“Se o movimento é imperceptível por natureza, é sempre em relação a um limiar qualquer de percepção, ao qual é próprio ser relativo, desempenhar assim o papel de uma mediação, num plano que opera assim a distribuição dos limiares e do percebido, que dá aos sujeitos perceptivos formas a serem percebidas: ora é esse plano de organização e de desenvolvimento, plano de transcendência que dá a perceber sem poder ser percebido, sem que ele próprio seja percebido.” (1997:75)

Essa causalidade da máquina dual psicanalítica é evocada por introduzir o princípio oculto que sustenta o plano de transcendência. Seu limite é manter o esquema da interpretação que justifica a presença do psicanalista.
Os pressupostos (não dito) perceptuais do plano transcendental permitem o vislumbre de seu esquema de causalidade. Projeta um percebido sem se deixar perceber. O esquema da psicanálise, ao propor o inconsciente como thêatron (lugar de ver), ainda sustenta, via inconsciente, esse princípio oculto.

“Tudo muda num plano de consistência ou de imanência, que se encontra necessariamente percebido por conta própria ao mesmo tempo em que é construído: a experimentação substitui a interpretação”
(1997:78)

Na linha abstrata de causalidade criadora da percepção molecular, em que o percebido acerca-se do imperceptível, a experimentação substitui a interpretação. O desejo investe a percepção de uma maleabilidade que conduz às micropercepções rizomáticas.
No entanto, as questões que sondam os autores na condução dessa causalidade, segundo a qual o inconsciente só pode ser captado numa operação trágica de dissolução da consciência, pautam-se ao esquema do psicotrópico. Ao suprimir ritos e civilizações, coloca-se a difícil questão de como traçar o plano que condiciona seu exercício? Nesse ponto retoma-se a ritualidade para, ao invés de retroceder, insistir nessa linha.
A ritualidade envia ao plano de imanência pela operação com os ritmos e as velocidades. Essas variações de compasso, que fornecem a senha para a constituição de tempos virtuais, dissemina a micropercepção rizomática. A liberação dessas micropercepções moleculares num plano senhor das velocidades e das vizinhanças constitui-se na ritualidade das sociedades ameríndias, no caso Guarani.